quarta-feira, 14 de junho de 2017

Doença metabólica não doi ...





                Só pra constar: a maioria da humanidade está doente. Com projeção de aumento nessa estatística. E estamos falando de 7 bilhões de comensais em casa,com perspectiva para 9.7 bilhões em 2050 [1].

Esse não é um retrato estático, e sim um sumário da tendência dos últimos 25 anos em 195 países, como visto no report publicado dia 12 de Junho de 2017 no New England Journal of Medicine, o “Fardo Global de Doenças” (GBD, do inglês "Global Burden of Diseases") [2], do Instituto de Metricas e Avaliação da Saúde (IHME) (do inglês “Institute for Health Metrics and Evaluation”).

O documento chama atenção particular para sobrepeso e obesidade, mas em verdade um grande cluster de doenças metabólicas segue em aumento de prevalência, como diabetes, doenças cardiovasculares, neurodegenerativas e câncer.

E isso apenas para os casos diagnosticados, sem considerar aqueles ditos “subclínicos”, em que já existe progressão de doença mas dentro de parâmetros ditos "normais" de marcadores clínicos tradicionais [3].


É uma pandemia
Silenciosa.  
Indolor
"Quem tem dor tem pressa".
Mas como doença metabólica não doi, não é lembrada.


O trabalho chama a atenção para um marcador em particular: o índice de massa corpórea (IMC, ou BMI do inglês “Body Mass Index). O IMC é o número obtido pela divisão da massa corpórea (digamos 80 kg) pelo quadrado da altura (digamos 1,70 m x 1,70 m), o que daria 80/ (1,70 x 1,70) = 27,7 kg/m2.

Ainda que o IMC sirva como indicador de ganho de massa corpórea, ele não é exatamente o melhor biomarcador antropométrico porque não faz distinção entre massa muscular e massa de tecido adiposo. Tampouco considera o local do tecido adiposo [4], sendo a abdominal muito mais preocupante.

Arnold Schwarzenegger [5] por exemplo pesando 118 kg e 1,88 m de altura possuiria um IMC de 33,4 kg/m2 [6]. E não parece ser alguem exatamente classificável nesse grupo de risco do IHME. Por questões como essa que, ainda que útil em certos casos, IMC é impreciso: melhor medir a cintura e dividir pela altura ou quadril [7]. Não precisa instrumentos sofisticados, nem balança no banheiro: apenas uma fita métrica.

Dai que vemos casos como obesidade metabolicamente saudável” (MHO, do inglês “Metabolically Healthy Obesity”), em que pessoas com sobrepeso/obesidade apresentam painel clínico laboratorial dentro da classificação de normalidade [8]. Entretanto, sob outra perspectiva clínica, podem já estar doentes, subclinicamente, como é o caso de aterosclerose.

 Mas a prevalência de doença pode estar muito além do peso [9], mesmo dentro dos que estão em grupos de menor risco segundo os parâmetros clínicos atuais, os quais notoriamente não são absolutos. Mesmo jovens ditos saudaveis, baixo peso, e demais parâmetros dentro da normalidade, tem apresentado riscos elevados de declínio da saúde, de modo silencioso, subclínico [10].

O que estaria por traz disso tudo ? Seriam questões genéticas ? Evolutivas ? 
Não parece ser, pois a escalada de prevalência dessas doenças tem acontecido de forma expressiva nas ultimas 2 a 5 gerações, o que não seria escalável evolutivamente mas está em perfeito paralelo com o advento da urbanização, como visto pela incrível correlação entre emissão de combustíveis fósseis [11] - indicador de urbanização - e a subida na prevalência de diabetes [12]. Tudo bem, correlação não implica causa [13]. Mas como por exemplo explicar a rápida expansão de doenças metabólicas em sociedades até pouco tempo remotas, como indígenos ? [14]


Não é questão de negar a importância de componente genético na predisposição para as doenças metabólicas, mas não parece ser o componente determinístico na progressão das mesmas.

Essas doenças metabólicas são chamadas de não-comunicáveis [15] por não serem infecto-contagiosas, mas são sim comunicáveis: socialmente.

A mudança expressiva em estilo de vida nessas décadas, que passa por mobilidade urbana, tempo para descanso, exercitar-se e nutrir-se adequadamente são agora “comum”, e virou o novo “normal”. Envolve ainda a massiva permeação, quase unipresente e inevitavel, de alimentos ultraprocessados, de baixo valor nutricional, baixa carga de micronutrientes essenciais, e lotados de compostos químicos com alto potencial de disrupção endócrina.


Mas o que fazer nesse contexto ? Buscar novos fármacos, novos medicamentos para tratar e prevenir as doenças ?! Talvez não esteja ai a solução, visto a progressão do fardo de doenças metabólicas a despeito de dezenas de medicamentos que surgiram nas ultimas décadas, desenvolvidos para esses males.

Talvez não seja necessário encerrar o antropoceno e retornar a era paleolítica [16]. De outra sorte, resgatar os valores culturais, tradicionais, parece ser um bom começo. Não que seja fácil, porque mudar estilo de vida não é apenas uma questão de entender e querer, pois requer um esforço de ir contar a corrente do circulo social estabelecido. 

                Mas não é impossível.

O Prof. Carlos Monteiro foi além de cunhar o termo ultra-processado [17]. Seu trabalho está calcado sobre sólido pilar da medicina baseada em evidência [18]. E sua equipe foi responsavel pela elaboração do “Guia Alimentar para a População Brasileira", adotado pelo Ministério da Saúde [19] , traduzido para outros idiomas, visto internacionalmente como melhor das diretrizes nutricionais, e também recomendado pela FAO/WHO [20]. Dentre as 158 páginas de informações valiosas, encontram-se os dez passos para uma alimentação adequada e saudável:


1.       Fazer de alimentos “in natura” ou minimamente processados a base da alimentação

2.       Utilizar óleos, gorduras, sal e açúcar em pequenas quantidades ao temperar e cozinhar alimentos e criar preparações culinárias

3.       Limitar o consumo de alimentos processados

4.       Evitar o consumo de alimentos ultraprocessados

5.       Comer com regularidade e atenção, em ambientes apropriados e, sempre que possível, com companhia

6.       Fazer compras em locais que ofertem variedades de alimentos “in natura” ou minimamente processados

7.       Desenvolver, exercitar e partilhar habilidades culnárias

8.       Planejar o uso do tempo para dar à alimentação o espaço que ela merece

9.       Dar preferência, quando fora de casa, a locais que servem refeições feitas na hora

10.   Ser crítico quanto a informações, orientações e mensagens sobre alimentação veiculadas em propagandas comerciais



Parece bastante sensato.
 E urgente. Antes que doa.




Leitura Recomendada & Referências
  [1] http://www.un.org/en/development/desa/news/population/2015-report.html
[2] “Health Effects of Overweight and Obesity in 195 Countries over 25 Years” The GBD 2015 Obesity Collaborators.
June 12, 2017. DOI: 10.1056/NEJMoa1614362. http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa1614362
[3] Luis Mauricio T. R. Lima (2017) Subclinical Diabetes. http://dx.doi.org/10.1590/0001-3765201720160394
[7] Swainson et al (2017). “Prediction of whole-body fat percentage and visceral adipose tissue mass from five anthropometric variables”. PLoS One. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0177175
[8] Kim et al (2017). ”Metabolically healthy obesity and the risk for subclinical atherosclerosis”   https://doi.org/10.1016/j.atherosclerosis.2017.03.035
[9] Yajnik & Yudkin (2004). “The Y-Y paradox». The Lancet. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(03)15269-5
[10] Petersen et al (2007). “The role of skeletal muscle insulin resistance in the pathogenesis of the metabolic syndrome”. PNAS. http://www.pnas.org/content/104/31/12587.abstract
[13] Messerli (2012). “Chocolate Consumption, Cognitive Function, and Nobel Laureates”. NEJM. http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMon1211064
[17] Carlos Monteiro et al (2010). “A new classification of foods based on the extent and purpose of their processing”. Cad. Saúde Pública. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2010001100005
[18] Para mais sobre essa classificação ver o monumental trabalhos epidemiológico do Prof. Carlos Monteiro, da USP Prof. Carlos Augusto Monteiro, USP-SP. CV Lattes. http://lattes.cnpq.br/9217754427341680

Nenhum comentário:

Postar um comentário