Uma situação parece perdida quando
notícia ruim não é mais novidade.
Ou pior, quando até desdenhamos:
“de novo essa notícia ?!”
E não é que no fechar de 2017, eis mais uma novidade
antiga: a prevalência mundial de diabetes segue aumentando, mundialmente.
Uma pandemia silenciosa.
Indolor.
Incolor.
Mas não insipida. Apresenta-se em vários "sabores"
Vai do doce “mellitus” (de mel, por conta da
urina adocicada) ao amargo da metformina.
Amargo é também o espectro da pandemia,
como trazidos pela International Diabetes
Federation (IDF) na 8ª edição do seu Diabetes Atlas[1]
em Novembro de 2017), que aponta uma cruel realidade: o tamanho do problema só
cresce em grandes números, absolutos e relativos.
Mas diabetes não é uma doença. São várias.
Monogênica
Tipo 3c
Tipo 1
Tipo 2 (T2DM)
E a T2D que mais tem impactado nesses números.
E paradoxalmente, pode ser até remissível.
Fato.
Diversos estudos clínicos controlados – alto nível de evidência médico-científica[2]
- tem demonstrado intervenções que podem ser empregadas na prevenção e reversão
de T2D, tais como:
- Restrição de alimentos com alto conteúdo de amido[3]
- Restrição de açucares [4]
- Restrição calórica [5]
Isto é ciência: remissão de T2D por controle alimentar.
Parece ultrarestritivo e impraticável, e que uma grande fome se instalará. Mas não, como veremos abaixo.
O mais incrível: nada disso é novidade.
Há coisa de 200 anos (duzentos anos !), quando não havia um medicamento
sequer para tratamento de diabetes (insulina surgiu em 1923), ja se conhecia formas de se
gerenciar diabetes:
- Restrição de amido
- Restrição de açucares
- Restrição calórica
Em 1821, Dr. William Prout apontava que uma alimentação rica em proteína diminuia os sintomas, em particular poliúria (diabetes) e glicosúria (melitus) [12]
Em 1877, Dr. William Morgan recomendava excluir toda
sorte de farinha ou doce da alimentação[6].
Em 1917, em seu livro “Diabetic Cookery”, Rebecca Oppenheimer fazia a mesma recomendação
de Morgan de 40 anos atras[7].
Em 1919, no livro “Diabetic Manual”[8],
o Dr Elliot P. Joslim, um dos maiores diabetologistas de todos os tempos e que
dá nome à famosa Joslin Clinic (EUA)[9],
fazia similar recomendação, de menor consumo de carbohidratos (que enumera
sendo amido e açucares), menos calorias totais e de mais lipídeos.
Ou seja, diminuir açúcares/doces/frutose (que aumentam
resistência insulínica e esteatose) e diminuir carga glicêmica (amido,
farinhas, tubérculos, grãos, ...).
Mais uma novidade que não é novidade.
Só que esta novidade não é notícia ruim.
Não significa tempo e recurso despendido a esmo para
reinventar a roda com novos RCT.
De 100 anos pra cá muita coisa mudou:
- não se sabia as diferenças entre os tipos de
diabetes, e para cada tipo se faz necessário distintas intervenções: são
doenças diferentes, ainda que com mesmo pré-nome (i.e., diabetes)
- não se tinha estudos clínicos controlados (RCT),
apenas estudos e relatos de casos. E na prática de saúde contemporânea, os RCT
são importantíssimos pois são evidência máxima da efetividade de alguma
intervenção (farmacológica ou não) e que permite a incorporação de tais
práticas de cuidados da saúde em livros-texto e em diretrizes, aos protocolos
oficiais. E portanto, na prática clínica, na interface do paciente com o
profissional de saúde.
Se a remissão de uma doença pode acontecer com uma
intervenção efetiva, segura, não-medicamentosa, acessível, conhecida há
mais de um século, por qual razão não é amplamente difundida pelos orgãos
gestores de saúde, divulgada em todas as diretrizes de saúde, porque não é implementada
?
Seria um segredo guardado a 7 chaves ? não, não é.
Seria uma abordagem cara devido a patentes vigentes ?
não, não é.
Seria uma terapêutica falsa, sem embasamento
científico ? não, não é.
Suponhamos que tivessemos uma farpa na mão ou pé.
Sabendo do mesmo, optariamos passar cremes, pomadas, analgésicos,
anti-inflamatórios, e fazer exames e mais exames de rotina para acompanhar o
processo de degeneração devido a presença daquela farpa, e aumentar mais e mais
a quantidade e variedades de medicamentos a medida que o quadro inflamatório e
infeccioso avaça ? Não seria mais razoável e efetivo retirar a mesma ao inves
de tratar uma série de sintomas e complicações ?
Suponhamos uma pessoa com alergia a algum tipo de
frutos secos (castanhas, nozes, etc) ou gluten ou ovo, seguisse consumindo os
mesmos a despeito dos problemas que seriam imediatamente percebidos. E para
amenizar, medicações para amenizar o quadro alérgico e complicações dele
advindas. E mesmo assim seguisse consumindo os alergenos. Não seria mais razoável
e efetivo resolver a origem do problema ao inves de tratar uma série de
sintomas e complicações ?
Nessas duas analogias– ainda que não perfeitas, apenas ilustrativas – parece patente qual a solução para cada caso.
E a consequencia de
não fazê-lo é bastante clara, irrefutável, inequivoca.
E a tomada de decisão para
solução do problema é perfeitamente tangível.
No caso de
T2D, existem muitos outros fatores que determinam a baixa adesão à
intervenção alimentar, dentre elas:
1. Receio de sentir fome
Ao se restringir alimentos com farinhas, grãos, tubérculos, doces/açúcares/frutose (isso inclui frutas muito doces e bebidas doces, refris, sucos, refrescos), tem-se o receio de que:
- não sobrará muita coisa
- passará fome
muito pelo contrário, se listarmos "o que fica" veremos que é um universo muito farto de opções[15], e - não menos importante:
- muito nutritivo - mais que amidos e açucares [13]
- muito saciante - mais que amidos e açucares [14]
Como contornar ?!
Restringindo esses alimentos de alta carga glicêmica e os doces/açúcares/frutose, e aproveitando um fantástico universo de alimentos que se tornarão eixo central.
Entendendo que tentação existe. Mas saúde em primeiro lugar.
2. Percepção da questão.
T2D é uma doença que passa desapercebida por décadas, e
até por isso projeta-se haver um elevado número de casos não diagnosticados.
E o que não é visto não é lembrado.
E o que não doi tampouco é lembrado.
E quando doi, ou é notado, por vezes já está bem agravado e o indivíduo já se deixa levar pela idéia de progressiva, degenerativa,
incurável, tomando conta do estado de espírito do indivíduo.
Como contornar ?!
Apesar da ausência de percepção física do T2D, é imprescindível se cuidar.
Mas isso esbarra em outra questão, seguida de proposta
de como contornar, como veremos mais abaixo.
3. Receio, incerteza, dúvida
(F.U.D., do inglês Fear, Uncertainty and
Doubt)
Vivemos uma época de grande incerteza sobre o que é
informação correta ou incorreta.
São matérias ou capas de revistas na banca de hornal
conflitantes entre si, isso pra não dizer trabalhos científicos.
A mídia é repleta de atagonismos sobre mesmo assunto
médico.
Como podemos nos deparar com tamanha avalanche de
informações ?
O indivíduo do século XXI, empoderado de certezas e
poder decisório sobre sua própria saúde, acaba indeciso e sem capacidade de
tomada de decisão frente a pletora de informações e opiniões divergentes.
Isso leva a desconfiar de tudo.
Ou quase.
Acredita-se no potencial curativo de um medicamento
prescrito por um profissional de saúde.
Acredita-se que uma vez tomando medicamento “anti-diabético”,
não haveria com nada mais que se preocupar.
Mas não é fato.
Um medicamento para baixar glicemia – ou pior, vários
- não consegue isoladamente transpor o agravo de algo que tem força
deterministica alimentar.
E FUD não é atributo
exclusivo do leigo, mas sim acomete também o profissional de saúde.
Como contornar ?!
Entender que medicamento sozinho não muda
habitos alimentares, não diminui o consumo especifico daquilo que constitui eixo central do problema.
4. Inevitabilidade social
É muito difícil, sobretudo em épocas festivas, ou
eventos sociais, entender-se limitando sua esfera de opções de consumo frente a
cornucópias de guloseimas e outros alimentos ultraprocessados que se fazem
presentes continuamente em nossa rotina.
Em nosso domicílio, de amigos, de colegas, no
trabalho, ponto da condução, no mercado, em todo lugar.
E usualmente a baixo custo.
E em pacotes convenientes.
E deficiente de micronutrientes, essenciais para vida.
O problema não é a indulgencia ocasional. E sim o
lugar comum que se toma como padrão.
E a compulsão.
Como contornar ?
Preparando-se para os eventos onde se vai, para as
saidas, para os translados trabalho-casa.
Tal como nos preparamos pra uma viagem. Planejamento. Fazer
refeição em casa antes. Levar lanche.
E o grande bizu: escovar
os dentes – excelente sensação de conclusão de uma refeição, removendo
aquele “after-taste”, “gostinho de quero mais”, desmoronando aquela tentação de
seguir no consumismo.
Tenha sempre uma escovinha de dente e tubinho de pasta
na bolsa. Ou algo que consiga tirar o gosto de comida da boca ao término da
refeição.
5. Fundamentalismo
tecnológico
Vivemos uma era de fundamentalismo tecnológico[11],
ou seja, de visão de que somente tecnologias cada vez mais sofisticadas seriam
capazes de resolver problemas.
Restaurantes, delivery.
Comida pré-pronta. Ou pronta.
Fast-food.
Muito medicamento. E que não funciona isoladamente, sendo até pior - clinicamente comprovado num dos maiores RCT já feitos com T2D, o ACCORD [15].
Muito medicamento sem
resolver problemas determinantes na resistência insulinica e alta carga glicêmica:
o padrão alimentar.
Como contornar ?!
Buscar orientações alimentares com bons profissionais
que entendam que T2D é doença de resistência insulínica e que se faz necessário
abaixar alta carga de glicêmica e açúcares/frutose.
E com esses fazer um bom planejamento de rotinas
compatíveis com o círculo social, familiar, econômico, regionalidade e todas as
questões mais centradas no perfil do paciente.
Com baixas cargas glicêmica e de açúcares/frutose.
6. Propósito
Chegando até aqui, notamos que os grandes problemas não
são exatamente no
como,
quando,
onde.
Temos ferramentas.
Instruções.
Sabemos o que fazer.
Sabemos que é possível fazer.
Que não requer banquetes de realezas.
Não parece impossível.
Soa gerenciável.
A grande barreira se denomina: propósito.
Ao tomar uma decisão, planejar uma ação, pensamos sempre
no tempo e na motivação.
Ao pegar um transporte: onde, que horas, pra ir aonde,
que horas chegar, quanto tempo leva
Estamos acostumados com planejamentos. Mas com base em imediatismo.
Mas assim como a vida, T2D não deve ser encarada com metas imediatas,
mas sim metas de longo prazo.
Faz-se necessário um argumento sólido.
Tangível.
Quais suas metas ?
Não é promessa de Reveillon pro ano seguinte.
É plano pra muitos Reveillons.
O calendário que se inicia não termina em 31 de dezembro
do ano seguinte.
O calendário é mais longo:
O que se deseja fazer daqui a
5 anos, 10 anos, 15 anos, 30 anos, 60 anos ?
E com muita saúde, paz e felicidade.
PS: agradecimentos especiais a Alex Ruhle por discussões sobre o assunto e a Raquel Trambaioli pela foto da camisa.
[1] International Diabetes
Federation, 2017. http://www.diabetesatlas.org
[3] Dietary carbohydrate restriction as the first
approach in diabetes management: Critical review and evidence base. Nutrition. 2015 Jan;31(1):1-13. http://dx.doi.org/10.1016/j.nut.2014.06.011
[4] Isocaloric fructose
restriction and metabolic improvement in children with obesity and metabolic
syndrome. Obesity (2016). http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/oby.21371/full
[5] Primary care-led weight management for
remission of type 2 diabetes (DiRECT): an open-label, cluster-randomised trial.
The Lancet, Dez 2017. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(17)33102-1
[6] William Morgan, Diabetes mellitus: its
history, chemistry, anatomy, pathology, physiology and treatment (1877), pg
159
[8] A diabetic manual for the mutual use of doctor
and patient (1919) Elliott P. Joslin, https://archive.org/details/adiabeticmanual00unkngoog
[11]Technological Fundamentalism. Conservation
Biology (1994) David W. Orr. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1046/j.1523-1739.1994.08020335.x/abstract
[12] William Prout, “An inquiry into the nature and treatment of gravel, calculus, and other diseases connected with a deranged operation of the urinary organs” (1821). https://archive.org/stream/inquiryintonatur00prou#page/68/mode/2up
[13] Subclinical Diabetes. An. Acad. Bras. Ciênc. vol.89 no.1 supl.0 Rio de Janeiro May. 2017 Epub May 04, 2017. http://dx.doi.org/10.1590/0001-3765201720160394
[14] Effect of a Low-Carbohydrate Diet on Appetite, Blood Glucose Levels, and Insulin Resistance in Obese Patients with Type 2 Diabetes . Ann Intern Med. 2005;142(6):403-411. http://annals.org/aim/article-abstract/718265/effect-low-carbohydrate-diet-appetite-blood-glucose-levels-insulin-resistance
[15] Effects of Intensive Glucose Lowering in Type 2 Diabetes The Action to Control Cardiovascular Risk in Diabetes Study Group* N Engl J Med 2008; 358:2545-2559. http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa0802743