Só pra constar: a maioria da humanidade está doente. Com projeção de
aumento nessa estatística. E estamos falando de 7 bilhões de comensais em casa,com perspectiva para 9.7 bilhões em 2050 [1].
Esse não é um retrato estático, e sim
um sumário da tendência dos últimos 25 anos em 195 países, como visto no report
publicado dia 12 de Junho de 2017 no New
England Journal of Medicine, o “Fardo Global de Doenças” (GBD, do inglês "Global Burden of Diseases") [2],
do Instituto de Metricas e Avaliação da
Saúde (IHME) (do inglês “Institute for
Health Metrics and Evaluation”).
O documento chama atenção particular
para sobrepeso e obesidade, mas em verdade um grande cluster de doenças
metabólicas segue em aumento de prevalência, como diabetes, doenças
cardiovasculares, neurodegenerativas e câncer.
E isso apenas para os casos diagnosticados, sem considerar aqueles ditos “subclínicos”, em que já existe
progressão de doença mas dentro de parâmetros ditos "normais" de marcadores clínicos
tradicionais [3].
É uma pandemia.
Silenciosa.
Indolor.
"Quem tem dor tem pressa".
Mas como doença metabólica não doi, não é lembrada.
O trabalho chama a atenção para um
marcador em particular: o índice de massa corpórea (IMC, ou BMI do inglês “Body Mass Index”). O IMC é o número
obtido pela divisão da massa corpórea (digamos 80 kg) pelo quadrado da altura
(digamos 1,70 m x 1,70 m), o que daria 80/ (1,70 x 1,70) = 27,7 kg/m2.
Ainda que o IMC sirva como indicador de ganho de massa corpórea, ele não é exatamente o melhor
biomarcador antropométrico porque não faz distinção entre massa muscular e
massa de tecido adiposo. Tampouco considera o local do tecido adiposo [4],
sendo a abdominal muito mais preocupante.
Arnold Schwarzenegger [5] por exemplo pesando 118 kg e 1,88 m de altura possuiria um IMC de 33,4
kg/m2 [6].
E não parece ser alguem exatamente classificável nesse grupo de risco do IHME.
Por questões como essa que, ainda que útil em certos casos, IMC é impreciso:
melhor medir a cintura e dividir pela altura ou quadril [7].
Não precisa instrumentos sofisticados, nem balança no banheiro: apenas uma fita
métrica.
Dai que vemos casos como “obesidade metabolicamente saudável”
(MHO, do inglês “Metabolically Healthy
Obesity”), em que pessoas com sobrepeso/obesidade apresentam painel clínico
laboratorial dentro da classificação de normalidade [8].
Entretanto, sob outra perspectiva clínica, podem já estar doentes, subclinicamente, como é o caso de aterosclerose.
Mas a prevalência de doença pode estar muito além do peso [9],
mesmo dentro dos que estão em grupos de menor risco segundo os parâmetros
clínicos atuais, os quais notoriamente não são absolutos. Mesmo jovens ditos
saudaveis, baixo peso, e demais parâmetros dentro da normalidade, tem apresentado riscos elevados de declínio da saúde, de modo silencioso,
subclínico [10].
O que estaria por traz disso tudo ? Seriam questões genéticas ?
Evolutivas ?
Não parece ser, pois a escalada de prevalência dessas doenças tem acontecido de forma
expressiva nas ultimas 2 a 5 gerações, o que não seria escalável evolutivamente
mas está em perfeito paralelo com o advento da urbanização, como visto pela incrível
correlação entre emissão de combustíveis fósseis [11]
- indicador de urbanização - e a subida na prevalência de diabetes [12].
Tudo bem, correlação não implica causa [13].
Mas como por exemplo explicar a rápida expansão de doenças metabólicas em sociedades até pouco tempo remotas, como indígenos ? [14].
Não é questão de negar a importância
de componente genético na predisposição para as doenças metabólicas, mas não
parece ser o componente determinístico na progressão das mesmas.
Essas doenças metabólicas são chamadas de não-comunicáveis [15]
por não serem infecto-contagiosas, mas são sim comunicáveis: socialmente.
A mudança expressiva em estilo de
vida nessas décadas, que passa por mobilidade urbana, tempo para descanso,
exercitar-se e nutrir-se adequadamente são agora “comum”, e virou o novo “normal”.
Envolve ainda a massiva permeação, quase unipresente e inevitavel, de alimentos
ultraprocessados, de baixo valor nutricional, baixa carga de micronutrientes
essenciais, e lotados de compostos químicos com alto potencial de disrupção
endócrina.
Mas o que fazer nesse contexto ? Buscar
novos fármacos, novos medicamentos para tratar e prevenir as doenças ?! Talvez
não esteja ai a solução, visto a progressão do fardo de
doenças metabólicas a despeito de dezenas de medicamentos que surgiram nas ultimas
décadas, desenvolvidos para esses males.
Talvez não seja necessário encerrar o antropoceno e retornar a era paleolítica [16].
De outra sorte, resgatar os valores culturais, tradicionais, parece ser um bom começo. Não que
seja fácil, porque mudar estilo de vida não é apenas uma questão de entender e
querer, pois requer um esforço de ir contar a corrente do circulo social
estabelecido.
Mas não é impossível.
O Prof. Carlos Monteiro foi além de
cunhar o termo ultra-processado [17].
Seu trabalho está calcado sobre sólido pilar da medicina baseada em evidência [18].
E sua equipe foi responsavel pela elaboração do “Guia Alimentar para a População Brasileira", adotado pelo Ministério da Saúde [19]
, traduzido para outros idiomas, visto internacionalmente como melhor das
diretrizes nutricionais, e também recomendado pela FAO/WHO [20].
Dentre as 158 páginas de informações valiosas, encontram-se os dez passos para
uma alimentação adequada e saudável:
1.
Fazer de alimentos “in natura” ou minimamente processados a
base da alimentação
2.
Utilizar óleos, gorduras, sal e
açúcar em pequenas quantidades ao temperar e cozinhar alimentos e criar
preparações culinárias
3.
Limitar o consumo de alimentos
processados
4.
Evitar o consumo de alimentos
ultraprocessados
5.
Comer com regularidade e
atenção, em ambientes apropriados e, sempre que possível, com companhia
6.
Fazer compras em locais que
ofertem variedades de alimentos “in natura”
ou minimamente processados
7.
Desenvolver, exercitar e
partilhar habilidades culnárias
8.
Planejar o uso do tempo para
dar à alimentação o espaço que ela merece
9.
Dar preferência, quando fora de
casa, a locais que servem refeições feitas na hora
10.
Ser crítico quanto a
informações, orientações e mensagens sobre alimentação veiculadas em
propagandas comerciais
Parece
bastante sensato.
E urgente. Antes que doa.
Leitura Recomendada & Referências
[1] http://www.un.org/en/development/desa/news/population/2015-report.html
[2] “Health Effects of Overweight and Obesity in 195 Countries over 25 Years”
The GBD 2015 Obesity Collaborators.
June 12, 2017. DOI:
10.1056/NEJMoa1614362. http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa1614362
[3] Luis Mauricio T. R. Lima (2017) Subclinical Diabetes. http://dx.doi.org/10.1590/0001-3765201720160394
[7] Swainson et al (2017). “Prediction of whole-body fat percentage and
visceral adipose tissue mass from five anthropometric variables”. PLoS One. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0177175
[8] Kim et al (2017). ”Metabolically healthy obesity and the risk for
subclinical atherosclerosis” https://doi.org/10.1016/j.atherosclerosis.2017.03.035
[9] Yajnik & Yudkin (2004). “The Y-Y paradox». The Lancet. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(03)15269-5
[10] Petersen et al (2007). “The role of skeletal muscle insulin resistance
in the pathogenesis of the metabolic syndrome”. PNAS. http://www.pnas.org/content/104/31/12587.abstract
[11] Al Gore (2017) Ted Talk. 2´20´´. https://www.ted.com/talks/al_gore_the_case_for_optimism_on_climate_change
[12] Rates of Diagnosed Diabetes (CDC)
- https://www.cdc.gov/diabetes/statistics/prev/national/figbyrace.htm
[13] Messerli (2012). “Chocolate Consumption, Cognitive Function, and Nobel
Laureates”. NEJM. http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMon1211064
[15] WHO. Non-communicable diseases. http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs355/en/
[17] Carlos Monteiro et al (2010). “A new classification of foods based on the extent and purpose of their
processing”. Cad. Saúde Pública. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2010001100005
[18] Para mais sobre essa classificação ver o monumental trabalhos epidemiológico
do Prof. Carlos Monteiro, da USP Prof. Carlos Augusto Monteiro, USP-SP. CV
Lattes. http://lattes.cnpq.br/9217754427341680