quinta-feira, 26 de julho de 2018

Ômegas e Ômegas



                Um estudo do grupo Cochrane – reconhecido pelas suas respeitadíssimas análises sistemáticas e meta-análises de estudos clínicos controlados – indicou que lipídeos tipo omega-3 (O3) não teriam contribuições sobre prevenção cardiocascular.
                Segundo o autor principal do estudo Cochrane, Dr. Lee Hooper da Universidade de East Anglia, “estamos confidentes nos achados desta revisão que vai contra a crença popular de que suplementos de omega-3 de cadeia longa (LCn3, entenda DHA/EPA) seriam protetivos para o coração” - narra.
Entretanto, fatores que o que o estudo não considera:
- o quanto de consumo de omega-6 (O6) os indivíduos estavam sujeitos: óleos de sementes, margarina, bolos e outras preparações culinárias que empregam excessiva quantidade desses óleos ricos em omega-6
- a qualidade das formulações de O3 que era empregada como suplemento
- a duração da intervenção e o tempo necessário para que algum efeito fosse observado
Antes de mais nada:
- O3 não é uma substância, mas sim uma ampla classe de substâncias distintas entre si quimicamente e em funções fisiológica e farmacológica.
- o efeito de cada O3 é contexto-dependente. 
- "efeito cardiovascular" é uma denominação ampla de efeitos sobre o diverso sistema cardiaco e vascular 
 - os efeitos (ou falta de) cardiovasculares não pressupõem efeitos (ou falta de) fisiológicos/farmacológicos sobre outros sistemas não analisados e reportados neste estudo
- suplemento não é alimento, e não podemos generalizar que O3 de qualquer classe de qualquer origem – por ex peixe – não tem benefícios a saúde e podemos sair consumindo indiscriminadamente qualquer coisa por ai.
- qual a finalidade de uso que foi estudada o uso de O3: cardiovascular – não exclui portanto outras finalidades, como inflamação, regeneração de sistema nervoso, benefícios oftamológicos, dentre outros pontuados no próprio estudo Cochrane
- qual a qualidade dos estudos analisados: se havia vies de reportar os dados, se bem randomizados, 
- quais os demais fatores de confusão envolvidos: alimentação com excesso de Omega-6 (O6), tempo de duração, força de associação, número de estudos, enfim uma diversidade relacionada a bioestatística.
 
                O estudo focou especificamente em prevenção cardiovascular primária (quem nunca teve evento) e secundária (quem já teve evento) por ácidos graxos O3, que incluem cadeias curtas (como os essenciais ALA e LA) e cadeias longas (LCn3 - como os condicionalmente essenciais DHAe EPA).
                Importante chamar a atenção que ALA (O3) e LA (O6) são lipídeos essenciais, respectivamente omega-3 (O3) e omega-6 (O6) de cadeia curta, o que significa que não produzimos no organismo e portanto precisamos ingerir a partir de alimentos. Por sua vez, DHA e EPA são omega-3 de cadeia longa (LCn3) produzidos a partir de ALA e, portanto, não seriam essenciais. Entretanto considerando a típica ingesta exacerbada de LA na alimentação ocidental (a partir de oleos de sementes como milho, canola, e outros), a produção de DHA e EPA fica comprometida, o que os torna “essenciais condicionais”, e seria portanto necessário obte-los a partir da alimentação.
                 Por exemplo, o próprio Cochrane reporta neste estudo que enquanto não são obervados efeitos de ALA em triglicerídeos, LCn3 são efetivos em abaixa-los de modo dose-dependente. Por sua vez, LCn3 aumentaria HDLc enquanto ALA modestamente abaixaria HDLc. Ou seja, notamos que esses lipídeos exerceriam efeitos diferente no organismo, o que não é surpreendente ainda que alguns ainda acreditem na historinha de que calorias seriam todas iguais (ex: 9 kcal/g lipídeo). Talvez para um combustor, mas não para um ser vivo: compostos diferentes potencialmente exercem efeitos fisiológicos diferentes que estão muito além de “calorias”. Da mesma forma que óleos de peixe, de soja, de milho, de oliva, de coco, são diferentes entre si em composição química e em efeitos metabólicos.
                 Não dá para ignorar por exemplo o estudo Lyon Heart e os efeitos de suplementação de ALA e diminuição de O6 na prevenção secundária.

                 Desta forma, podemos considerar que é muito inocência simplesmente não considerar:
- os benefícios de omega-3 na alimentação, em particular a partir de peixes;
- os benefícios de uma alimentação livre de alimentos ultraprocessados e mais focado em preparações alimentícias da culinária tradicional;
- que suplementos de O3, em particular DHA/EPA, sejam efetivos na prevenção primária e secundária e tratamento de diversas patologias (neurodegeneração, neuropatias, degeneração macular, dentre outras).
                A meta-análise da Cochrane não é um ponto final, e sim uma pausa para reflexão sobre contexto e limitações.
Seria razoável não ignorar por completo os reconhecidos benefícios de omega-3 – alimentos ou suplementos - na prevenção, manutenção ou resgate de condições de saúde. Preferencialmente de alimentos in natura.
Se for para descartar alguma coisa, talvez fosse melhor opção começar pelos óleos de sementes e não o de peixe.Sem esquecer que óleo de peixe peixe não é.






Referências
S. C Cunnane (2003) Problems with essential fatty acids: time for a new paradigm? Prog Lipid Res. 2003 Nov;42(6):544-68.https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/14559071/
2013_Geoff Talbot - Specialty oils and fats in food and nutrition: properties, processing and applications
Variability of linolenic and linoleic acids in soybean oil - Journal of the American Oil Chemists Society - October 1957, Volume 34, Issue 10, pp 491–493. https://link.springer.com/article/10.1007%2FBF02638073
de Lorgeril M et al (1994). Mediterranean alpha-linolenic acid-rich diet in secondary prevention of coronary heart disease. Lancet. 1994 Jun 11;343(8911):1454-9. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/7911176

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Regra dos pequenos números



 
  O impacto da descoberta da insulina por pesquisadores da Universidade de Toronto e sua rápida introdução como agente terapêutico para diabetes em 1923 foi campeão em prêmios com todo e devido mérito.
Como nos mostra o jornalista Chris Feudtner em seu livro Bittersweet, foi uma terapia life-saver: o desfecho esperado de expectative de vida de poucos anos fora estendido por décadas.  

Ainda em 1923, o diabetologista Frederic Allen publicou na revista JAMA o estudo de caso de um menino diabético (possivelmente diabético tipo 1, T1D, insulino-dependente) que fora iniciado em terapia insulínica. No artigo ele reporta poder reintroduzir algum “carb” (possivelmente amido, farináceos,...) mas pontuava que “demais seria desnecessário e indesejável visto a necessidade de se empregar mais insulina”. 
Bem antes de 1923 (cerca de 200 anos ou mais antes de hoje), portanto, na era pré-insulina e pré-medicamentos para diabetes, o único tratamento disponível era terapêutica nutricional por restrição de alimentos glicemiantes (“carb, sacarineos, farináceos”) ou o dulçor na urina (sim, se provava urina, dai o nome diabetes – polyuria – e mellitus – mel, doce). O proprio Dr. Allen empregava essa terapêutica nutricional antes da era pré-insulina, junto com tantos outros.
           Mas no séc 20 pós-insulina as diretrizes se estabeleceram de outro modo: consome-se de tudo, desde que compensando por medicamentos (insulina).
O fato é: quanto maior a quantidade ingerida de alimentos glicemiantes, tanto maior a dose de insulina para se administrar (nos pacientes insulinizados). 

Olhar a refeição e estimar quanto tem de glicose ou alimentos que vão aumentar glicemia:
Com erros.
Some-se a isso a incerteza de predizer a digestão e absorção do alimento.
E a incerteza de se estimar quanto precisa de insulina
E a incerteza da medida da insulina na seringa
E a incerteza da velocidade e quantidade de insulina que será absorvida conforme o local da aplicação.

Somando-se tantas incertezas, o erro pode ser tão grande quanto 20 % para mais ou para menos.
E a certeza de que medicamento em excesso não é bom.
Ou seja, quanto maior a quantidade de alimentos glicemiantes, maior a dose de insulina, e maior o erro.
  É uma montanha-russa, para cima, para baixo, hiper- , hipo- .
           Há sempre aqueles que não seguem as diretrizes oficiais. Como o Dr. Richard K. Bernstein, T1D, engenheiro, que no alto de seus 45 anos foi fazer medicina pois via que as recomendações de alta carga glicêmica não lhe parecia compatível com bons desfechos para si próprio e, portanto, para diabéticos. Publicou diversos livros no assunto, o mais recente “Diabetes Solution”, em que demonstra seu protocolo e hoje é seguido por milhares de pessoas T1D pelo mundo, incluindo a comunidade digital Type1Grit, onde cerca de 2 mil adultos e crianças T1DM seguidores do protocol do Dr. Bernstein desfilam monitores de glicemia diária planos e valores de A1c típicos de indivíduos não-diabéticos. 
Eles seguem a chamada "regra dos pequenos números" do Dr. Bernstein: baixa carga glicêmica, menos insulina, menos erros, menos danos.
E sem prejuizos na gastronomia, basta buscar exemplos na web (ex: https://www.google.com/search?q=low+carb+diet).
            Esse grupo – que consome por dia no máximo cerca de 35 g de carb (equivalente a uma fatia media de pão de forma ) e usa baixissimas doses de insulina -  foi estudado cientificamente e, confirmados serem T1D, reportou-se que eles possuiam media de A1c de 5.6 – e baixíssimos índices de eventos adversos (como hipoglicemias e hospitalizações), desenvolvimento normal e otimos marcadores metabólicos. Claro que pode haver viés, como por exemplo só estar no grupo aqueles que estão bem adaptados à abordagem de baixíssima carga glicêmica (sem tubérculos, farinhas, amido, pães, doces, bolos, sucos, frutas doces, dentre outros). De outra sorte, esse grupo demonstra que existe sucesso neste protocolo.
                 O estudo – publicado na revista Pediatrics (Lennerz et al, 2018) – já alcançou a grande mídia e jornais, inclusive a American Diabetes Associatio.  Muitas associações no mundo inteiro já discutem as melhores abordagens para T1D. Mas para que as associações oficiais preconizem protocolos terapêuticos (farmacológicos, nutricionais ou outros) são requeridos estudos clínicos randomizados. Em um estudo de revisão também recentemente publicado versando sobre protocolos de baixa carga glicêmica para T1D (Turton et al, 2018) urge para a necessidade de mais estudos clínicos, comparativos entre os protocolos: alto versus baixo carb.
                O fato é que estamos vivenciando um momento de reflexão e inflexão: resgate do histórico terapêutico nutricional - cientificamente estudado - apoiado na medida certa da revolução farmacológica trazida com a insulina pela turma de Toronto.




Referência:
Lennerz BS, Barton A, Bernstein RK, et al. (2018) Management of Type 1 Diabetes With a Very Low–Carbohydrate Diet. Pediatrics. 141(6):e20173349. http://pediatrics.aappublications.org/content/pediatrics/early/2018/05/03/peds.2017-3349.full.pdf
Jessica L. Turton, Ron Raab, Kieron B. Rooney (2018) Low-carbohydrate diets for type 1 diabetes mellitus: A systematic review. PLOS One. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0194987
Richard K. Bernstein (2011) Diabetes Solution - http://www.diabetes-book.com/
Chris Feudtner (2003) Bittersweet: Diabetes, Insulin, and the Transformation of Illness (https://www.goodreads.com/book/show/1047779.Bittersweet)
Anahad O’Connor - How a Low-Carb Diet Might Aid People With Type 1 Diabetes -
Miriam E. Tucker - Very Low-Carbohydrate Diet Beneficial in Type 1 Diabetes - May 07, 2018  - https://www.medscape.com/viewarticle/896288
Study links very low-carb diet to better glycemic control in diabetes