quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Promessas para muitos Reveillons.




Uma situação parece perdida quando notícia ruim não é mais novidade.
Ou pior, quando até desdenhamos:

“de novo essa notícia ?!”

E não é que no fechar de 2017, eis mais uma novidade antiga: a prevalência mundial de diabetes segue aumentando, mundialmente.

Uma pandemia silenciosa.
Indolor.
Incolor.
Mas não insipida. Apresenta-se em vários "sabores"

Vai do doce “mellitus” (de mel, por conta da urina adocicada) ao amargo da metformina.
Amargo é também o espectro da pandemia, como trazidos pela International Diabetes Federation (IDF) na 8ª edição do seu Diabetes Atlas[1] em Novembro de 2017), que aponta uma cruel realidade: o tamanho do problema só cresce em grandes números, absolutos e relativos.

Mas diabetes não é uma doença. São várias.

Monogênica
Tipo 3c
Tipo 1
Tipo 2 (T2DM)

E a T2D que mais tem impactado nesses números. 
E paradoxalmente, pode ser até remissível. 
Fato.
Diversos estudos clínicos controlados – alto nível de evidência médico-científica[2] - tem demonstrado intervenções que podem ser empregadas na prevenção e reversão de T2D, tais como:

- Restrição de alimentos com alto conteúdo de amido[3]
- Restrição de açucares [4]
- Restrição calórica [5]

Isto é ciência: remissão de T2D por controle alimentar.

Parece ultrarestritivo e impraticável, e que uma grande fome se instalará. Mas não, como veremos abaixo.

O mais incrível: nada disso é novidade.
Há coisa de 200 anos (duzentos anos !), quando não havia um medicamento sequer para tratamento de diabetes (insulina surgiu em 1923), ja se conhecia formas de se gerenciar diabetes:

- Restrição de amido
- Restrição de açucares
- Restrição calórica
 
Em 1821, Dr. William Prout apontava que uma alimentação rica em proteína diminuia os sintomas, em particular poliúria (diabetes) e glicosúria (melitus) [12]
Em 1877, Dr. William Morgan recomendava excluir toda sorte de farinha ou doce da alimentação[6].
Em 1917, em seu livro “Diabetic Cookery”, Rebecca Oppenheimer fazia a mesma recomendação de Morgan de 40 anos atras[7].
Em 1919, no livro “Diabetic Manual[8], o Dr Elliot P. Joslim, um dos maiores diabetologistas de todos os tempos e que dá nome à famosa Joslin Clinic (EUA)[9], fazia similar recomendação, de menor consumo de carbohidratos (que enumera sendo amido e açucares), menos calorias totais e de mais lipídeos.
 


Ou seja, diminuir açúcares/doces/frutose (que aumentam resistência insulínica e esteatose) e diminuir carga glicêmica (amido, farinhas, tubérculos, grãos, ...).


Mais uma novidade que não é novidade.
Só que esta novidade não é notícia ruim.
Não significa tempo e recurso despendido a esmo para reinventar a roda com novos RCT.
De 100 anos pra cá muita coisa mudou:

- não se sabia as diferenças entre os tipos de diabetes, e para cada tipo se faz necessário distintas intervenções: são doenças diferentes, ainda que com mesmo pré-nome (i.e., diabetes)
 - não se tinha estudos clínicos controlados (RCT), apenas estudos e relatos de casos. E na prática de saúde contemporânea, os RCT são importantíssimos pois são evidência máxima da efetividade de alguma intervenção (farmacológica ou não) e que permite a incorporação de tais práticas de cuidados da saúde em livros-texto e em diretrizes, aos protocolos oficiais. E portanto, na prática clínica, na interface do paciente com o profissional de saúde.


Se a remissão de uma doença pode acontecer com uma intervenção efetiva, segura, não-medicamentosa, acessível, conhecida há mais de um século, por qual razão não é amplamente difundida pelos orgãos gestores de saúde, divulgada em todas as diretrizes de saúde, porque não é implementada ?

Seria um segredo guardado a 7 chaves ? não, não é.
Seria uma abordagem cara devido a patentes vigentes ? não, não é.
Seria uma terapêutica falsa, sem embasamento científico ? não, não é.

          Suponhamos que tivessemos uma farpa na mão ou pé. Sabendo do mesmo, optariamos passar cremes, pomadas, analgésicos, anti-inflamatórios, e fazer exames e mais exames de rotina para acompanhar o processo de degeneração devido a presença daquela farpa, e aumentar mais e mais a quantidade e variedades de medicamentos a medida que o quadro inflamatório e infeccioso avaça ? Não seria mais razoável e efetivo retirar a mesma ao inves de tratar uma série de sintomas e complicações ?

          Suponhamos uma pessoa com alergia a algum tipo de frutos secos (castanhas, nozes, etc) ou gluten ou ovo, seguisse consumindo os mesmos a despeito dos problemas que seriam imediatamente percebidos. E para amenizar, medicações para amenizar o quadro alérgico e complicações dele advindas. E mesmo assim seguisse consumindo os alergenos. Não seria mais razoável e efetivo resolver a origem do problema ao inves de tratar uma série de sintomas e complicações ?

          Nessas duas analogias– ainda que não perfeitas, apenas ilustrativas – parece patente qual a solução para cada caso. 
E a consequencia de não fazê-lo é bastante clara, irrefutável, inequivoca.
E a tomada de decisão para solução do problema é perfeitamente tangível.

No caso de T2D, existem muitos outros fatores que determinam a baixa adesão à intervenção alimentar, dentre elas: 

1. Receio de sentir fome
Ao se restringir alimentos com farinhas, grãos, tubérculos, doces/açúcares/frutose (isso inclui frutas muito doces e bebidas doces, refris, sucos, refrescos), tem-se o receio de que:
- não sobrará muita coisa
- passará fome

muito pelo contrário, se listarmos "o que fica" veremos que é um universo muito farto de opções[15], e - não menos importante:
- muito nutritivo - mais que amidos e açucares [13]
      - muito saciante - mais que amidos e açucares [14]

     Como contornar ?!
      Restringindo esses alimentos de alta carga glicêmica e os doces/açúcares/frutose, e aproveitando um fantástico universo de alimentos que se tornarão eixo central.
      Entendendo que tentação existe. Mas saúde em primeiro lugar.

      

     2. Percepção da questão.
T2D é uma doença que passa desapercebida por décadas, e até por isso projeta-se haver um elevado número de casos não diagnosticados.
E o que não é visto não é lembrado.
E o que não doi tampouco é lembrado.
E quando doi, ou é notado, por vezes já está bem agravado e o indivíduo já se deixa levar pela idéia de progressiva, degenerativa, incurável, tomando conta do estado de espírito do indivíduo.


Como contornar ?!
Apesar da ausência de percepção física do T2D, é imprescindível se cuidar.
Mas isso esbarra em outra questão, seguida de proposta de como contornar, como veremos mais abaixo.

     3. Receio, incerteza, dúvida (F.U.D., do inglês Fear, Uncertainty and Doubt)
Vivemos uma época de grande incerteza sobre o que é informação correta ou incorreta.
São matérias ou capas de revistas na banca de hornal conflitantes entre si, isso pra não dizer trabalhos científicos.
A mídia é repleta de atagonismos sobre mesmo assunto médico.
Como podemos nos deparar com tamanha avalanche de informações ?
O indivíduo do século XXI, empoderado de certezas e poder decisório sobre sua própria saúde, acaba indeciso e sem capacidade de tomada de decisão frente a pletora de informações e opiniões divergentes.
Isso leva a desconfiar de tudo.
Ou quase.
Acredita-se no potencial curativo de um medicamento prescrito por um profissional de saúde.
Acredita-se que uma vez tomando medicamento “anti-diabético”, não haveria com nada mais que se preocupar.
Mas não é fato.
Um medicamento para baixar glicemia – ou pior, vários - não consegue isoladamente transpor o agravo de algo que tem força deterministica alimentar.
E FUD não é atributo exclusivo do leigo, mas sim acomete também o profissional de saúde.


Como contornar ?!
Entender que medicamento sozinho não muda habitos alimentares, não diminui o consumo especifico daquilo que constitui eixo central do problema.


     4. Inevitabilidade social
É muito difícil, sobretudo em épocas festivas, ou eventos sociais, entender-se limitando sua esfera de opções de consumo frente a cornucópias de guloseimas e outros alimentos ultraprocessados que se fazem presentes continuamente em nossa rotina.
Em nosso domicílio, de amigos, de colegas, no trabalho, ponto da condução, no mercado, em todo lugar.
E usualmente a baixo custo.
E em pacotes convenientes.
E deficiente de micronutrientes, essenciais para vida.
O problema não é a indulgencia ocasional. E sim o lugar comum que se toma como padrão.
E a compulsão.

Como contornar ?
Preparando-se para os eventos onde se vai, para as saidas, para os translados trabalho-casa.
Tal como nos preparamos pra uma viagem. Planejamento. Fazer refeição em casa antes. Levar lanche.
E o grande bizu: escovar os dentes – excelente sensação de conclusão de uma refeição, removendo aquele “after-taste”, “gostinho de quero mais”, desmoronando aquela tentação de seguir no consumismo.
Tenha sempre uma escovinha de dente e tubinho de pasta na bolsa. Ou algo que consiga tirar o gosto de comida da boca ao término da refeição.

     5. Fundamentalismo tecnológico
Vivemos uma era de fundamentalismo tecnológico[11], ou seja, de visão de que somente tecnologias cada vez mais sofisticadas seriam capazes de resolver problemas.
Restaurantes, delivery.
Comida pré-pronta. Ou pronta.
Fast-food.
Muito medicamento. E que não funciona isoladamente, sendo até pior - clinicamente comprovado num dos maiores RCT já feitos com T2D, o ACCORD [15].

Muito medicamento sem resolver problemas determinantes na resistência insulinica e alta carga glicêmica: o padrão alimentar.


Como contornar ?!
Buscar orientações alimentares com bons profissionais que entendam que T2D é doença de resistência insulínica e que se faz necessário abaixar alta carga de glicêmica e açúcares/frutose.
E com esses fazer um bom planejamento de rotinas compatíveis com o círculo social, familiar, econômico, regionalidade e todas as questões mais centradas no perfil do paciente.
Com baixas cargas glicêmica e de açúcares/frutose.


     6. Propósito
Chegando até aqui, notamos que os grandes problemas não são exatamente no
como, 
quando, 
onde.

Temos ferramentas.
Instruções.
Sabemos o que fazer.
Sabemos que é possível fazer.
Que não requer banquetes de realezas.
Não parece impossível.
Soa gerenciável.

A grande barreira se denomina: propósito.

Ao tomar uma decisão, planejar uma ação, pensamos sempre no tempo e na motivação.
Ao pegar um transporte: onde, que horas, pra ir aonde, que horas chegar, quanto tempo leva
 
Estamos acostumados com planejamentos. Mas com base em imediatismo. 

Mas assim como a vida, T2D não deve ser encarada com metas imediatas, 
mas sim metas de longo prazo.

Faz-se necessário um argumento sólido.
Tangível. 
Quais suas metas ? 

Não é promessa de Reveillon pro ano seguinte.
É plano pra muitos Reveillons.

O calendário que se inicia não termina em 31 de dezembro do ano seguinte.

O calendário é mais longo: 
O que se deseja fazer daqui a
5 anos, 10 anos, 15 anos, 30 anos, 60 anos ?

E com muita saúde, paz e felicidade.






PS: agradecimentos especiais a Alex Ruhle por discussões sobre o assunto e a Raquel Trambaioli pela foto da camisa.

[1] International Diabetes Federation, 2017. http://www.diabetesatlas.org
[3] Dietary carbohydrate restriction as the first approach in diabetes management: Critical review and evidence base. Nutrition. 2015 Jan;31(1):1-13. http://dx.doi.org/10.1016/j.nut.2014.06.011
[4] Isocaloric fructose restriction and metabolic improvement in children with obesity and metabolic syndrome. Obesity (2016). http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/oby.21371/full
[5] Primary care-led weight management for remission of type 2 diabetes (DiRECT): an open-label, cluster-randomised trial. The Lancet, Dez 2017. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(17)33102-1

[6] William Morgan, Diabetes mellitus: its history, chemistry, anatomy, pathology, physiology and treatment (1877), pg 159

[8] A diabetic manual for the mutual use of doctor and patient (1919) Elliott P. Joslin, https://archive.org/details/adiabeticmanual00unkngoog
[11]Technological Fundamentalism. Conservation Biology (1994) David W. Orr. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1046/j.1523-1739.1994.08020335.x/abstract
 [12] William Prout, “An inquiry into the nature and treatment of gravel, calculus, and other diseases connected with a deranged operation of the urinary organs” (1821). https://archive.org/stream/inquiryintonatur00prou#page/68/mode/2up
 [13] Subclinical Diabetes. An. Acad. Bras. Ciênc. vol.89 no.1 supl.0 Rio de Janeiro May. 2017  Epub May 04, 2017. http://dx.doi.org/10.1590/0001-3765201720160394 
[14] Effect of a Low-Carbohydrate Diet on Appetite, Blood Glucose Levels, and Insulin Resistance in Obese Patients with Type 2 Diabetes . Ann Intern Med. 2005;142(6):403-411. http://annals.org/aim/article-abstract/718265/effect-low-carbohydrate-diet-appetite-blood-glucose-levels-insulin-resistance
[15] Effects of Intensive Glucose Lowering in Type 2 Diabetes  The Action to Control Cardiovascular Risk in Diabetes Study Group*  N Engl J Med 2008; 358:2545-2559. http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa0802743